Você defende a privatização da água? As empresas podem nem querer a sua cidade

Argumentos e estatísticas usados para defender o repasse geral do saneamento ao setor privado apresentam lacunas

A narrativa de que o setor privado opera em absoluta eficiência nos serviços de saneamento básico apresenta buracos. Crateras. A premissa central para o PL 3261, que escancara as portas para que grandes corporações abocanhem as atividades municipais de água e esgoto, tem problemas.

O Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) oferece um diagnóstico público anual formulado com base em dados apresentados pelas prefeituras e pelas concessionárias. A verdade é que há bons e maus prestadores de serviços tanto no público como no privado. Os indicadores de eficiência, de tarifa, de investimento e de cobertura também enviam sinais dúbios.

A situação em termos de abastecimento de água não é tão ruim. O índice de cobertura geral é de 93%, segundo os dados de 2017, que são os mais recentes. A perda de água é absurda: 38%, com picos de 55% no Norte e 46,3% no Nordeste.

No esgoto é que há disparidades regionais mais acentuadas. A população atendida com rede é de 60,2%, indo de 83,2% no Sudeste para 13% no Norte. O tratamento é bem pior: 46% no total, com 34,7% no Nordeste e 22,6% no Norte.

De certo modo, é esperado que regiões marcadas por dificuldades geográficas enormes apresentem índices de cobertura mais baixos. Fazer estruturas em lugares imensos, nos quais chove boa parte do ano (ou faz um sol terrível), e onde os municípios têm baixa capacidade de execução orçamentária não é pra qualquer um.

O marco legal do setor de saneamento é a Lei 11.445, de 2007. Durante alguns anos, após a legislação, houve investimentos maiores, em especial pelo governo federal. Quando se analisa os índices de cobertura, as empresas privadas tentam mostrar o copo meio vazio para dizer que essa legislação fracassou e que é preciso uma nova para garantir o aumento das redes de cobertura, mas, também, há como enxergar um copo meio cheio.

O relatório Efetividade dos Investimentos em Saneamento no Brasil, publicado em 2016 pelo Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura da Fundação Getúlio Vargas, parece olhar para o copo meio vazio. Para os pesquisadores, o crescimento na cobertura de esgoto entre 2004 e 2014 foi “praticamente nulo”: de 45% para 58%. São 13 pontos, o que pode ser chamado de muita coisa, mas não “nulo”. Uma das conclusões é de que o setor privado parece ser mais rápido na aplicação dos recursos.

Porém, há dois anticases na hora de defender que as corporações da área resolverão o problema. Em Manaus, os serviços foram privatizados na virada do século. Uma empresa assumiu a questão, repassou a outra, que repassou a outra. Desde a metade de 2018, quem controla as operações é a Aegea, uma das maiores do Brasil. A coleta de esgoto fica na casa de 10% e o tratamento em 23%. Na água, o índice de perda é de assombrosos 74,6%, um dos mais altos do país.

O Tocantins é um caso ainda mais importante para o debate sobre a MP 868 por ser uma espécie de protótipo daquilo que poderia se tornar o sistema de saneamento do Brasil. As ações da Saneatins foram vendidas em 1998, por R$ 2 milhões, para a Empresa Sul-Americana de Montagens.

Em 2010, sem ter interesse em 78 dos 139 municípios, a concessionária devolveu-os ao governo do estado, que criou a Aquatins, responsável também por cuidar das áreas rurais, exatamente onde é mais dispendioso realizar obras. Ou seja, o poder público ficou com aquelas municípios deficitários. Naquele ano, apenas doze cidades contavam com serviços de coleta de esgoto.

Se mantida como está, o PL 3261 pode criar essa situação em nível nacional. O setor privado ficará com os lugares mais interessantes e deixará o déficit para o poder público, com possibilidade de arrebentar com as companhias estaduais.

Então, é preciso olhar com cuidado para as estimativas utilizadas para justificar a privatização dos serviços. O Ministério do Desenvolvimento Regional fala agora em R$ 597 bilhões de investimentos até 2033 para garantir a universalização. Seriam R$ 40 bi por ano, contra R$ 25 bi na primeira versão do Plano Nacional de Saneamento Básico, em 2013. Na melhor época, entre a metade da década passada e a metade dessa década, chegou-se a R$ 10 bi.

Parece inviável. Mas, olhando o orçamento da União, de R$ 3,38 trilhões, esse investimento é ínfimo. Bastaria menos de um dia de pagamento de juros da dívida pública para arcar com esse montante.

“Hoje, eu posso colocar a quantidade de dinheiro que for. Se eu não resolver o problema anterior, que é o problema relacionado à dificuldade de execução desses recursos, não adianta”, cita Edson Aparecido da Silva, assessor de saneamento da Federação Nacional dos Urbanitários e integrante do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas).

Para ele, além de lidar com a questão da execução dos recursos, é preciso pensar no saneamento ligado ao direito à cidade, o que passa por prever diferentes maneiras de o Estado atuar para levar água e esgoto até favelas. Além disso, ele defende uma reestruturação das empresas públicas para que ganhem melhor performance e se abram a mecanismos de controle pela sociedade.

Tratativas

Além de contar com os dados públicos, o governo federal tem se valido de uma série de estatísticas privadas para justificar a mudança no sistema de saneamento. BNDES, Ministério do Desenvolvimento Regional e Tribunal de Contas da União são alguns dos que citam estudos criados pelo Trata Brasil, que conseguiu se posicionar como grande referência nessa área.

Criado em 2007 e visto como organização da sociedade civil, o instituto é bancado pelas grandes empresas privadas de saneamento. É deles o diagnóstico de que há uma grande possibilidade de avançar na cobrança compulsória dos serviços de esgoto em qualquer lugar em que seja oferecido. Na visão de um estudo realizado em 2015, se há rede, é preciso pagar por ela.

“As causas para a não ligação à rede de esgoto são diversas, sendo a resistência ao pagamento da tarifa (a mais recorrente), seguida da falta de informação, da inexistência de sanções e do fato do morador não querer danificar o piso.”

É possível que exista gente de sacanagem nesse bolo de quase quatro milhões de residências que o Trata Brasil diz terem condições de pagar pelo esgoto. Entretanto, não dá para ignorar a enorme desigualdade social do Brasil. Onde o instituto vê “resistência” é provável que exista pobreza, mesmo.

O estudo que notabilizou o Trata Brasil é a divulgação de um ranking anual de saneamento. Um ranking que basicamente faz organizar os dados públicos do SNIS, o sistema do Ministério do Desenvolvimento Regional, que, de fato, é bem difícil de consultar. Essa pesquisa é executada pela GO Associados, uma consultoria ligada a vários segmentos empresariais. E que tem como clientes a BRK Ambiental e a Aegea, entre outros gigantes do saneamento.

Quem lê o Joio talvez se recorde de um estudo “clássico” da GO realizado a pedido da Associação Brasileira das Indústrias de Alimentos (Abia). Para se opor à adoção de alertas na parte frontal dos rótulos de comida-porcaria, a Abia pediu que a consultoria analisasse o impacto econômico da medida.

O que a GO fez foi pegar uma pesquisa Ibope, realizar uma extrapolação de dados e concluir que o Brasil perderia R$ 100 bilhões ao ano com esses simples triângulos. Entre outras falhas, a análise considerava que boa parte dos brasileiros simplesmente deixaria de comer. Morreria, só porque ficaria com medo dos alertas nos rótulos. Espera-se que os estudos da GO na área de saneamento sejam mais criteriosos.  

Fonte: Com informações de Joio e o Trigo

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