Água privatizada? O que está em jogo na votação do marco legal do saneamento
A discussão do marco legal do saneamento na Câmara dos Deputados chegou à reta final, ainda cercada de muitas dúvidas, polêmicas e embates. O Projeto de Lei nº 3261/19 está na agenda do plenário desta segunda-feira (9) e tem o presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), como um de seus principais entusiastas. O texto também tem o apoio do governo Bolsonaro, para quem a proposta vai atrair R$ 700 bilhões em investimentos e universalizar os serviços de saneamento até 2033.
O tema, porém, divide as bancadas estaduais, cada qual convivendo com uma realidade diferente: enquanto no Paraná os serviços de água e esgoto estão disponíveis para a maioria da população, há estados com índices baixíssimos, uma situação precária que gera impactos na saúde e no bem-estar da população.
São as distintas realidades estaduais que pesam contra o PL, um texto que pretende unificar as regras do setor sob o guarda-chuva da Agência Nacional das Águas (ANA). Mas o principal objetivo do projeto é abrir o mercado para a iniciativa privada, de modo a garantir recursos para a universalização do abastecimento de água e da coleta e tratamento do esgoto.
Na média brasileira, 83,5% da população é servida por rede de água e apenas 52,4% tem o esgoto coletado, dos quais apenas somente 46% são tratados, conforme os dados mais recentes do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) divulgados em fevereiro. Esses percentuais pouco subiram nos últimos anos, ligando o alerta para a impossibilidade de se cumprir as metas de universalização até 2033, conforme o Plano Nacional de Abastecimento (PlanSab), de 2013.
Estudo do Instituto Trata Brasil divulgado em 2018 apontou que são necessários investimentos de R$ 443,5 bilhões em 20 anos para levar água e esgoto a todos os brasileiros. O problema é que, com a crise econômica, os recursos públicos para aplicar no setor foram reduzidos – mesmo com a possibilidade de ganhos futuros. Já descontando os custos da universalização, a sociedade brasileira teria ganhos econômicos e sociais estimados em R$ 1,1 trilhão. O levantamento foi feito pela consultoria Exante, em parceria com o Trata Brasil e a Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon).
As dificuldades das empresas estatais em melhorar os índices – o mercado hoje é dominado por sociedades de economia mista com administração pública – levaram o deputado Geninho Zuliani (DEM-SP), relator do PL na comissão especial sobre o assunto, a prever o m dos contratos vigentes. Entre as críticas direcionadas às estatais estão o uso político, com loteamento financiadas pela tarifa paga pelo usuário.
As primeiras versões do texto foram muito criticadas, e o substitutivo que será levado ao plenário da Câmara prevê sobrevida aos contratos firmados, até o advento do prazo contratual. Há prazo de um ano para as empresas estatais renovarem os chamados “contratos de programa” com os municípios. Há previsão de prorrogação de cinco anos no caso de contratos vigentes que comprovem cobertura de 90% do serviço de abastecimento de água e 60% no de coleta e tratamento de esgoto. Após um ano da promulgação da lei, a licitação será obrigatória, com participação de quaisquer interessados: empresas públicas ou privadas.
Mas o foco de Zuliani é mesmo em repassar os serviços para a iniciativa privada. O projeto prevê que esses contratos de programa terão de ser alterados ao longo do tempo para o novo modelo de prestação, e que serão necessárias licitações para concessão de serviços ou para privatização das companhias estaduais – o controle deverá passar para a iniciativa privada.
Ao falar sobre a nova versão, Zuliani armou à Agência Câmara: “Acrescentamos prazo de 12 meses para que as empresas estatais possam pegar os bons contratos vigentes e renovarem a antecipação deles, dentro desses 12 meses, por até 30 anos. Isso para poder valorizar as empresas”.
Desafios não serão resolvidos só pelo setor privado ou só por estatais
A tendência, porém, é que algumas empresas estatais permaneçam no mercado. “Os desafios são tão grandes que não serão resolvidos só pelo setor privado ou só pelo setor público. Precisamos da união de forças, e em muitos locais veremos PPPs [parcerias público-privadas]” , disse à Gazeta do Povo o economista Gesner Oliveira, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) e especialista em saneamento.
Em audiências públicas na Câmara dos Deputados sobre o PL, outras vozes defenderam esse ponto de vista. “No caso de água e esgoto, resíduos sólidos e drenagem [os quatro vetores do saneamento básico], considerando as grandes desigualdades territoriais e sociais do Brasil, a ação do Estado deve ir além do aspecto regulatório” , armou em 17 de setembro Marcos Thadeu Abicalil, especialista em Água e Saneamento do New Bank of Development, o banco de desenvolvimento dos Brics (parceria entre os países Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).
Fonte: Gazeta do Povo